É aquela altura do ano em que estamos mais abertos à possibilidade de mudança. Renovamos a esperança, formulamos desejos e pensamos no que gostaríamos de ver acontecer no ano novo. É um momento festivo, exceto a parte do champanhe que não bebo e das passas com que me engasgo, quando tento acompanhar os outros.
Precisamos de rituais, de acreditar, de ter um sentido de possibilidade. Mas sem querer ser o Grinch que estraga o réveillon, a má notícia é que lá para meados de janeiro, as resoluções tornam-se lembrança, em fevereiro as justificações perderam a validade e quando chegar março, a probabilidade é deixar convencer-me de que estou a dar o meu melhor e voltar a pensar nisso mais a sério, no final de mais um ano…
Para o calendário, 2020 é a continuação de 2019, como 2019 foi a continuação de 2018. No cultivo da vida, o que andámos a semear, e a não semear, iremos colher amanhã. As palavras que foram ditas ou que ficaram por dizer, as ações que cuidam ou descuidam, que resolvem ou adiam e as experiências que tivemos, não se apagam com as 12 badaladas. Somos projeto contínuo, imperfeito e sempre inacabado, como diria Sartre.
Ter resoluções é uma espécie de admissão da necessidade de objetivos e de melhoria, que desejamos ver acontecer no futuro. Mas resoluções não são objetivos. Estes últimos exigem mais do que intenções e desejos. A proliferação de livros e palestras motivacionais, mostra-nos como há procura e espaço para mais uma teoria e estratégia. E isto porque a coisa não é fácil, nem é igual para todos. Vemos as notícias e anúncios sobre grandes feitos, corpos invejáveis, pessoas de “sucesso” ou personalidades do ano, mostrando apenas o resultado, a montra, sem descrever com realismo o processo que tiveram de passar para lá chegar. E depois ouvimos os pregões “basta querer que tu consegues porque o céu é o limite”. Assim, idolatramos pensando que uns são especiais, dotados e que pertencem ao Olímpio do deuses. E outros, como eu e o leitor que se interessou pelo texto, comuns mortais condenados à sua condição humana falível.
Tudo é um processo com condições facilitadoras mas também com imprevistos, surpresas e obstáculos. Uma mudança, ou um bom hábito, envolve desconforto, sacrifício. Tal como o amor, uma obra, um projeto ou a beleza de um jardim, exigem compromisso, dedicação, responsabilidade, tenacidade e cuidados regulares. Teremos as interrupções e as distrações do dia a dia, o Pavlov e a teimosia dos velhos hábitos, as decepções, os erros, assim como a insidiosa auto-sabotagem… E não, não basta querer. A não ser que o que realmente queremos seja o que realmente precisamos. A não ser que seja muito relevante e acessível e uma questão de dignidade, de vida ou de morte. E, ainda assim, não dispensam a humildade de pedir ajuda, de reconhecer as limitações e ter o exemplo ou apoio de algo ou alguém que nos encoraja e incentiva.
2020 inaugura uma nova década, um novo ciclo. Não é uma página em branco nem uma tela vazia. É mais um capítulo de uma história maior que tem um passado, presente e futuro. Em vez de resoluções e projeções para o futuro, faz-me mais sentido ver de onde venho para compreender (e aceitar) onde estou e escolher melhor para onde quero ir. Faço o balanço da década que termina, reconheço os frutos das decisões e ações, não do ano anterior, mas de um ciclo. As desilusões tornam-se revelações já sem o sabor amargo. As adversidades e os erros, bons mestres. A persistência e a fé, bons aliados. O tempo que me concederam e os afetos que recebi, uma dádiva, um luxo na época do “sem tempo”, do descartável e das relações de conveniência. A confiança de me deixarem entrar, estar ao lado e testemunhar a vulnerabilidade humana, uma honra incomparável. A autenticidade e a audácia, apesar dos riscos, compensam. Os livros e as pessoas melhores do que eu, elevaram-me. O amor, a natureza e a música confortaram-me. A sensação é boa. Mas também há receios e resistências. Há sombra e partes soltas por integrar e resolver. São avisos e convites para reflexão e revisão. Cenas do próximo capítulo…
No fim, é a gratidão e a confiança com que olho para mais uma década que foi e que aí vem, desejando estar viva. Nada é permanente nem para sempre, a não ser a morte. Não é sobre a felicidade que vai e vem, é sobre a história que contamos a nós próprios. É sobre o sentido que cada um de nós lhe soubermos dar, feito de pequenos passos, de dignidade, com abertura ao outro, curiosidade e boa vontade. Boas despedidas e ótimas entradas!
Paula Serpa – www.serpessoa.com
Imagem: Algarve (2017)